sábado, 2 de julho de 2016

O sonho do outro


Um dia descobriu que vivia outras vidas. Não que lhes faltasse tal merecimento, apenas não eram suas. De pequena, inconscientemente decidiu não viver a sua existência. Talvez por nunca ter nela encontrado sentido ou abraço. Desde então passou a emprestar seu vazio para lotar sonhos alheios, sem que jamais algum a pudesse preencher. Vivia em uma espécie de limbo. Um purgatório de almas emprestadas que, de início, fuga, mas que depois se tornara ofício. Certa vez, assim num piscar de olhos, fora banida daquele que, por um lapso de tempo e espaço, acreditou ser seu primeiro sonho. Ficou vagando como um depositário de desejos ambulante e fatigado, frequentando bares e becos em busca de vontades sem lar como um parasita largado à onírica sorte. Encontrou muitos deles e, ao passo em que fazia o que de melhor sabia, a mais terrível angústia lhe acometia as entranhas: não mais sonhar. Eis que um sentimento vestido do mais cruel caráter perfurara seu subconsciente e ali injetara generosas doses de ausência de ilusões. Dias e noites delirantes degustaram suas vísceras ardidas e magras em que já não distinguia o cheiro nem as cores das coisas. Tudo parecia amarelado e as vozes agiam tão distantes quanto os rostos desfocados. Queria um sonho! Poderia ser qualquer um. Jamais os havia escolhido tampouco subestimado. Cansada e aturdida, sem o único dom que lhe tornara útil, ingressou em uma longa viagem rumo ao lugar para onde vão todas as quimeras perdidas. E fora ali, na ante-sala da última gota de sangue, quase sem mais tempo ou sorte, que encontrou os sonhos que incansavelmente buscara, e eram todos seus.

Ana Oliveira

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