terça-feira, 13 de outubro de 2015

Pra dizer adeus

Escrevo com sangue porque a tinta das lágrimas é transparente e já não suporto mais esconder essa dor. O vermelho da rosa que nunca foi dada nem cheirada é também a cor da carne dilacerada que vomita amor. Nada mais há de ser feito além de pregos nas portas e chaves engolidas. Calo a boca da ternura com a força de um sentir que quer ser cego e esquecido.

Já não enxergo as cores da vida, nem do verde que todos vêem. O que sobrou aqui volta aos seus medos ainda mais carregados de segredos. Que os dias voem apressados e as horas estejam sempre correndo contra o tempo. A fome da saudade precisa ser alimentada com novas risadas ou enterrada ao pé da desperdiçada espera. 

Quiçá pudesse esculpir um sol que tivesse a mesma força do abraço ausente. O momento não é de fuga, mas de partida. Sigo para viver na imensidão onde sorrisos mágicos conspirem a favor do medo da coragem. Maldita lua que bendiz a sorte, mas semeia morte com um sorriso amarelo. Sob seu altar regente e materno suplico pela trégua do eterno rosto que me escarnece ao devir em todos os outros.

Ana Oliveira

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Só em ser














Sabe-se lá quanta dor
Suporta o poeta louco
De num cárcere viver
Onde tantos são santos,
Bons e de perto pouco

Pudera ele entender
O mal que só faz crescer
Sem por, nem si e nem dó
Só enxerga o coração
Aprisionado dentro do nó

Quem dera um dia poder
E o mundo fosse também
Delirar seu poético viver
Jamais sol sozinho seria
No mar dessa afã euforia

Ana Oliveira


terça-feira, 6 de outubro de 2015

O querer














O poeta quer escrever,
O que os olhos choram
O que os dedos falam
O que o ouvido finge
O que a boca lambe
O que o coração dispara
O que a sorte ampara
O que o amor espalha
O que o medo encara
O que a dor disfarça
O que a perna bamba
O que o tempo urge
O que o vento surge
O que a mente ascende
O que a língua fere
O que o sol promete
O que a morte acalma
O que o peito cala
O que o corpo tara
O que a vida sara

Ana Oliveira

Amor não é só desejo

Considero um tanto leviano tratarmos o amor como um simples desejo. Se ponderarmos algumas colocações acerca, por exemplo, do Banquete de Platão, percebemos que se trata de uma tragicomédia passada durante uma festa onde a maioria está sob forte influência etílica e por isso, vulneráveis a todo tipo de sentimento e suas variadas interpretações. A tragicomédia é satírica por natureza, logo, esse gênero literário tende a ironizar o homem e seus sentimentos mais “nobres”. Não é a toa que a visão platônica do amor virou um clichê, sinônimo de “amor impossível”, ou seja, perfeito. O amor, como os próprios filósofos tratam, é uma questão metafísica e por isso, carrega toda ambivalência do universo, sendo assim, não podemos mensurá-lo através de pares de oposição, bem/mal, bom/ruim, sagrado/profano.

Não estou aqui desmerecendo a grandiosa obra de Platão, nem mesmo desdenhando do desejo. Ele é uma manifestação humana que pode ou não estar relacionada com o amor (a psicanálise explica). No poema “Desejos”, de Carlos Drummond de Andrade, é possível observar que o desejo nem sempre vem imbuído de erotismo:

“Desejo a você 
Fruto do mato 
Cheiro de jardim 
Namoro no portão 
Domingo sem chuva 
Segunda sem mau humor 
Sábado com seu amor”

Basta pensarmos no amor que sentimos por nossos pais, irmãos, amigos. Pergunto então, esse amor é outro amor? Ele é separado por categorias? Por função? Aliás, ao ler O Banquete tive uma ótima percepção sobre o amor, principalmente quando é comparado à verdade e à sabedoria. Acredito que amor, verdade e sabedoria estão acima do desejo. Esse desejo que nos desumaniza, essa analogia com brinquedo, aquisição de bens de consumo e material está muito mais voltada a uma banalização dos sentimentos da vida contemporânea, inspirada na lógica da substituição, do descarte. Assistimos o amor sendo vendido nas prateleiras da mídia irresponsável e perversa. 

E é dessa atrocidade que fujo quando me enterro no lirismo, porque acredito piamente no amor. Prefiro lê-lo pelas linhas de quem entende que a reciprocidade existe e se ela acontecer, o amor vai além do físico, posse ou egos inflados de desejo. Assim, prefiro confiar no que o brilhante poeta chileno, Pablo Neruda, escreveu: "Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde, amo-te simplesmente sem problemas nem orgulho: amo-te assim porque não sei amar de outra maneira." 

Ana Oliveira

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A outra face















A fotografia não queria, porém dizia
Sobre o primeiro olhar no intervalo
Entre o piscar que acende e esconde
Estampado de tristeza, talvez pavor
Ao mesmo tempo tênue ar de pureza
Um deslumbramento meio escondido
Por detrás das cortinas dos cabelos
Linhas livres como um véu que dança
Embaçado de poesia e esperança vã
As flores trazem a dualidade roxa
Da infância e frias noites cemiteriais
Cem mil faces, nomes e inspirações
Quase nenhuma de aspiração frívola
Às vezes uma, outras ou ninguém
Coisas escritas pelos cantos da boca
Asas que te querem cortar, inúteis
Mais coragem que o medo do medo
Verdades que escorrem pelo ralo
No desejo que anseia novos banhos.

Anna Poulain