quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Uma prosa sobre quase morrer

A tristeza é uma dor gelada de olhar profundo. Seus sentidos são secos. A boca amarga, a pele rígida. O som da tristeza é um sussurro incessante e histérico. Um silêncio intercalado pelo estampido do medo. Uma respiração que se confunde com o cheiro do sangue e a paralisia do ar. A tristeza é a antessala da morte.

Ana Oliveira

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Abelhar

No céu da vida ameaçada
Voeja a abelha apressada
Encorajada pela urgência
De espalhar a existência

Ana Oliveira

Pólen vida

De pólen em pólen sobrevoa
A pequena abelha apressada
Uma sina sem linha de chegada
Pois a vida não é tarefa à toa

Ana Oliveira

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Perguntas a Neruda II

Qual a resposta que não tem pergunta?
Quem sentenciou a borboleta à morte prematura?
Quem quebrou a chave do tempo?
Quem subtraiu o livro da noite?
Qual o sabor preferido do vento?
Quem escolheu o perfume das flores?
Porque o cheiro da rosa não é de jasmim?
E se a margarida casasse com o cactus?

Ana Oliveira

Perguntas a Neruda I

Quem disse que o diabo é mau?
Quem já conseguiu agarrar o vento?
Quem tem o mapa da cidade perdida?
Como está o humor da madrugada fria?
Quantas cores tem o arco-íris da lágrima?
Onde mora o pássaro que pousou na janela?
As perguntas também tem razão?

Ana Oliveira

Perguntas a Neruda

Quem me perguntou se era assim que eu queria?
Quem escreveu as regras do mundo? 
Quem apagou a luz do afeto?
Quem disse que o céu é o teto? 
Quem desenterrou o anel de noiva da chuva?
Qual é a cor do verde quando chora?
Qual é o tamanho do mar que deságua dos teus olhos?
Quem misturou as tintas da tua pele? 
Qual é o cheiro dos cabelos da noite?


Ana Oliveira

quarta-feira, 2 de junho de 2021

O fim do poema


Não tenho mais poesia. Enfim, literal. Uma escrita apática, antes sombria. Apenas fosca. Foram os anos, os desamores, os dissabores. As perdas, os danos, os enganos. Não sei. A poesia virou um cinzeiro abarrotado e amanhecido. Um mofo de pão. Uma casca de qualquer coisa que já não serve. Vocês venceram! Já não há mais olhos marejados, nem mariposas estomacais. Apenas uma acidez assídua e vencedora. Não há mais sequer um resto, restolho, restinho, de nada. Só embrulho, entulho. Cascalhos de palavras chutadas. Não me peça mais para escrever, exija qualquer outra coisa. Um tapa na cara, um gole de cachaça, me mande para aquele lugar, mas poesia, nunca mais. 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

A ponta

Aquele iceberg que te mostrei na TV
Era apenas uma ponta gelada
Uso o resto que fica embaixo d'água
Para te dizer que é assim que me sinto
Submersa, quase congelada na agonia
Da tua dualidade frenética
Do teu sorriso inconstante
Que me escapa pelos vãos dos cabelos
Tão escassos quanto tua alegria
Aquela extremidade fria
É o pedaço que conheço de ti
Ínfimo diante do que te transtorna
Do que entorna o caldo da tua urgência
E da minha parca paciência

Ana Oliveira